O sofrimento é matéria prima para nascer um escritor, uma música, um artista, uma personagem. Uma fénix se quiserem.
Ontem prometi que vos iria contar sobre os meus medos e um pouco mais da minha história.
Vemos belas fotos, vidas perfeitas, mas não o é, para ninguém. Muitas de vocês gostam do que escrevo porque sentem verdade e é na partilha que nasce a identificação e a minha realização.
É raro alguém mostrar a verdade, mas são estas partilhas que permitem que no meio do nosso caos e limitações encontremos alguma normalidade na nossa suposta anormalidade.
Eu conto-me por palavras, porque sei que há muita gente que se sente anormal nos seus choros, depressões e medos e não sabem qual a razão. Mas muitas vezes é preciso recuar até às primeiras memórias para nos entendermos e aceitarmos. Sugiro que o façam para se descobrirem e amarem-se tal e qual como são e começar a mudarmos em conjunto alguma tristeza que vos boicote.
Esta é parte da minha história, e sei que é na empatia e compaixão que a vergonha é aniquilada. Sei disso. Não tenho vergonha do meu passado, teria vergonha se soubesse que fiz mal a alguém e não o fiz, nem faço. Tento melhorar todos os dias, tento crescer enquanto ser.
Cresci no meio de uma família de classe média.
Minha mãe era uma “princesa” neta de gente rica em St.Tome de Negrelos, Santo Tirso, gente abastada com propriedades que perdeu muitas terras.
Todos conheciam a família Coelho e respeitavam. A Fátima como se chamava criada por 5 tios e os avós nessa aldeia. Única menina, primeira neta, depois da minha Bisavó Rosalina ter parido 6 homens, sendo um deles, o pai da minha mãe. Ela foi a menina desejada e como tal apaparicada e falava das papoilas e das suas correrias dos campos como a mais doce memória até ao seu último suspiro.
Seus sonhos passavam por todas as esquinas dessa terra que a viu crescer, e apaixonar-se até ao fim da vida dela. Cinco tios, um avô e o pai. Sete figuras masculinas sobre uma menina de colo que nada podia fazer a não ser correr, estudar, ler e mimar os avós e tios e ser estragada de amor por eles. Minha mãe foi imensamente feliz na infância até casar. A mãe dela, engravidou solteira, e teve a minha mãe sem estar casada. Nesses tempos minha avó Rosa não era a esposa perfeita por ter sucumbido ao desejo antes do tempo. Eram conhecidas como as Feijoas loiras de olhos azuis, mas de acordo com os olhos da minha avó Rosalina umas oferecidas. Nada boas para contrair matrimónio.
Valeu lhe a neta desejada, Minha Mãe. Os meus 2 avós rumaram para o Porto e entregaram aos meus bisavós e tios avós a minha mãe para ser criada em berço de ouro e punhos de renda.
Minha mãe e seus livros, quadras e poesias que eu herdei e tanto amo. Irei honrar cada detalhe.
Meu pai nunca foi feliz. Foi incompreendido. Penso que se realizou apenas nos negócios.
Filho do Abílio conhecido pelo Grilos
o único alfaiate na aldeia de Abragão em Penafiel, e da minha avó Laura, uma mulher triste e submissa muito maltratada.
Tiveram 8 filhos e outros tantos nados-mortos. O meu avô nunca ensinou a arte de alfaiate aos filhos para que não tivesse concorrência quando fossem adultos. Obrigou-os a trabalhar cedo e meu pai sendo o irmão homem mais velho contava, que descalço saia ao domingo à noite com 8 anos, levava um pau no ombro com um farnel miserável para 6 dias. Regressava a pé na 6 feira. Ia trabalhar para uma padaria longe, longe demais para qualquer criança. Sem amor, frio, medo.
Meu pai era austero, severo, disciplinado, uma homem à antiga. Aperto de mão era assinatura.
Eu sou igual nesse aspecto e em muitos outros. Disciplina, honra e respeito foi-me instruído desde cedo.
Minha avó Laura era maltratada, muito maltratada. Demasiado para os meus pequenos olhos. Vi-a muito poucas vezes, mas sempre que encontrava o meu avô gritava-lhe com frequência:
- Cala-te não percebes nada.
- ninguém quer saber a tua opinião.
Os olhos tristes, uma mártir. Sempre envergonhada. Mas como disse logo no início a vergonha passa diante da compaixão e isso a minha mãe tinha e deu-nos de sobra.
Adorava ver a minha mãe, como papel de nora da avó Laura porque falavam em segredo. Minha avó dizia-lhe a sussurrar:
- Fátima os homens não precisam saber tudo.
Minha mãe dava-lhe doces em segredo e fazia-lhe festas. Ralhava ao meu pai para ser bom filho. Eram outros tempos chamavam-se os sogros por País.
Esta deixa da minha avó permitia a minha mãe
sonhar com o passado por cumprir. De um amor que não pode viver poucos anos antes de conhecer o meu pai.
Meus pais, conheceram-se por carta e viriam a casar em menos de um ano depois da história de amor linda e atribulada que a minha mãe não soube segurar com o seu amor da aldeia.
Penso que se iludiu e agarrou-se na crença de poder substituir um amor com outro, casando com o meu pai por a relação anterior não ter resultado. Falou do Gentil de Vila das Aves até morrer.
Casou com o meu pai, Zeca como ela lhe chamava. E segurou-se na paixão e nos olhos azuis dele. Minha mãe não casou com o amor da vida dela, e meu pai sabia disso e nem um nem outro suportaram esta sentença.
Daqui nasceu todo um precipício de problemas para 4 crianças que nasceram dessa união. Eu e os meus 3 irmãos. Sou a mais nova.
Estiveram emigrados cerca de 15 anos e regressaram, sempre focados que Portugal era o país que amavam. Estamos em 1985. Tinha 7 anos quando venho para Portugal. Passávamos as férias cá, e honestamente nunca gostei de viver em França, nunca senti como o meu país.
Meu pai montou o seu negócio o Café PIU PIU e foi um sucesso pelas ideias inovadoras e carências de tudo o que era lazer nesse tempo.
Bilhares, máquinas Flippers, VHS com últimos filmes que tinham saído do cinema gratuitamente para os clientes passarem as tardes no café a consumirem.
Conquistaram a vizinhança e a rapaziada e juventude não saía da porta. Cresci no meio da malta, no meio da insurrectada.
Havia sucesso nos negócios e horror em casa para todos.
Cresci no meio de violência grave.
Aqui começa a doer e quando me falam em ter saído vencedora, lembro-me que escolhi o caminho mais difícil o de ser a minha heroína.
Meu pai batia frequentemente na minha mãe, gritavam, partiam coisas. Haviam inclusive ameaças de morte, meu pai bebia para esquecer provavelmente as misérias e falta de afecto. Um passado repleto de traumas sem compaixão. Minha mãe ripostava com palavras e toda a espiral de 4 crianças a chorar a implorarem para que parassem não acontecia. Murros, pontapés, insultos. Minha mãe chorava horas até ficar exausta, ficávamos no silêncio a consolá-la. Não entendíamos.
Silêncios eram longos, a vergonha, a pena, a desorientação dos 4 filhos. O abandono, a falta de colo para alguém me sossegar. Era a mais nova com uma diferença grande dos meus 3 irmãos.
Cada um por si e eu sendo a mais nova mais distante de qualquer maturidade via-me perdida. Restava esperar e rezar pedindo todos os dias que não discutissem.
Resolvi ser muito boa em tudo para que houvesse tema de orgulho e talvez um dia viessem as boas palavras e reconhecimento.
Lembro-me que com 6 anos uma vez colocar- me de joelhos a pedir ao meu pai para que ele não fizesse nada. Levei um pontapé e voei, falamos de um corpo magro, uma menina muito pequena.
O ódio e o amor passeiam juntos. Cegueira das palavras que dilaceram as almas também.
Quase todos os dias haviam berros, choro, gritos. Más palavras e na maior parte das vezes o assunto era dinheiro. Tenho um conceito de dinheiro muito diferente da maior parte porque apenas gosto de o ter pela estabilidade de concretizar os meus sonhos e projetos. Tenho trauma ao dinheiro e ao que ele arrasta consigo. Acredito que o dinheiro é tão sujo quanto o álcool, drogas. Dinheiro cega as pessoas, destrói famílias. Separa. Dinheiro é bom para a paz e gozar um pouco.
No meio deste caos nascia um quadro grave de ansiedade comigo que o soube esconder durante anos mas nascia a Mulher que Nunca mas nunca iria depender de um Homem para rigorosamente nada e que seria aluna de 20 em tudo na vida exigindo o impossível de si para nunca alguém a mandasse calar ou rasgar uma saia por ter uma racha maior que o desejado.
Nunca seria a avó Laura e por muito amor e saudade nunca seria a minha mãe.
Anabela Pinto
La Portuguese